Marília recentemente publicou uma construção literária sobre a expansão do sistema punitivo, cuja versão segue aqui em primeira mão!!!
O crime nosso de
cada dia
Marilia Montenegro
Pessoa de Mello
Doutora pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica
de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife – UFPE.
Área do
Direito: Penal; Criminologia Constitucional
Resumo:
O texto apresenta de maneira informal a expansão do sistema punitivo e a
criminalização dos movimentos sociais nas últimas manifestações no Brasil. A
analise é feita a partir de uma narrativa em que um estudante universitário, no
dia do seu aniversário de 18 anos, comete uma sequência de condutas tipificadas
na legislação penal brasileira como crimes. No decorrer do dia desse jovem é possível
perceber como o direito penaliza as relações cotidianas se afastando das
propostas declaradas, especialmente do direito penal como “ultima, ratio” na concepção
de um estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Expansão do direito penal;
criminalização dos movimentos sociais; criminologia crítica
Abstract: This article presents,
in an informal way, the growing expansion of the punitive system and the
criminalization of social movements during the recent protests in Brazil.
Taking a narrative approach, it explores the story of an undergraduate student
who, during his 18th birthday, commits a series of acts that are defined as
criminal acts in Brazilian law. The analysis of this young man’s day reveals
how far the law goes in penalising our everyday relationships, which in turn
reveals how the law diverges from its declared aims – particularly the criminal
law, the ‘ultima ratio’ in a democratic State based on the rule of law.
Hoje, neste evento1, poderia abordar a ineficiência de sistema penal de várias formas, poderia
apresentar concepções teóricas, apontar dados, porém, acredito que a história
de vida da cada um de vocês seja a melhor maneira de comprovar o “nonsense” do
sistema punitivo.
Dessa forma, resolvi apenas fazer um relato
sobre José, que poderia ser João, Pedro ou quem sabe Maria. Essa situação
ocorreu aqui na cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, mas poderia
ter acontecido em qualquer cidade brasileira.
José
vivia sonhando com o dia em que completaria 18 anos e poderia “tirar” sua
carteira de motorista, comprar sua cerveja, suas revistas e ir ao cinema, sem
nenhum temor de solicitarem sua carteira de identidade.
Hoje é
o dia do 18.º aniversário de José.
José finalmente
ficaria livre das ameaças constantes de sua mãe, pois ela fazia questão de
lembrar toda sexta-feira, sempre na sexta-feira, que bebida era só para maiores
de 18 anos. Já não aguentava dever favores ao seu irmão mais velho, logo agora
que José tinha ingressado na Universidade e já era quase um profissional.
José
acorda com vontade de fazer a barba e pensa na lista de atividades para
realizar nesse dia tão importante.
Neste momento preciso fazer a seguinte
explicação. Conforme o art. 27 do CP, o nosso amigo acordou imputável, embora,
para contrariar parte da sociedade, a legislação ofereça alguns benefícios a
José como: prazo prescricional reduzido pela metade e uma atenuante genérica,
que é reconhecida como uma atenuante preponderante para os Tribunais
Superiores, o que incomoda os autores de viés mais punitivista.
Voltemos a José.
Ele
começou o dia se dirigindo até a autoescola, para finalizar os seus testes e,
finalmente, receber sua carteira de motorista. No caminho, como estava
apressado, tropeçou em uma planta ornamental, localizada no hall de
entrada do prédio onde mora, além de sujar o tênis danificou três ou quatro
galhos da planta.
Mais uma explicação.
Vamos considerar que José foi negligente,
assim ele cometeu o primeiro crime de sua vida: dano a planta ornamental.
Pasmem. Tal crime admite a forma culposa,
com pena de detenção um a seis meses, conforme o art. 49 da Lei 9.605/1998 (Lei
dos Crimes Ambientais).
Na
saída da autoescola estava próximo da Rua Afonso Pena, conhecida como “Rua da
Xerox”, então aproveitou a oportunidade para pegar as cópias dos livros
indicados pelos professores.
Estava
orgulhoso, pois tinha reservado parte da mesada para comprar a xerox de três
livros importantes para os seus estudos. Tinha certeza que seus pais ficariam
felizes.
Explicando, nesse momento, José tinha
acabado de cometer o crime do art. 184 do CP, com pena de detenção de três
meses a um ano, como foram três livros já estamos no concurso de crimes, com
sorte ele pode ser beneficiado pelo sistema da exasperação.
Com os
livros nas mãos, e feliz da vida, foi chamado pelos seus colegas, estudantes do
curso de ciência política da UFPE, para comparecer a passeata contra o aumento
das passagens de ônibus. 2 Quando estava no Parque Treze de Maio,
região central da cidade, em meio à confusão, foi empurrado por um PM. Rapidamente
passa pela sua cabeça as suas aulas de história.
Então
José afirma, ao Policial Militar, que é um cidadão de bem e que a ditadura
tinha acabado. Por fim fala:
“– Camarada
estou lutando pelos meus direitos.”
Naquele
momento, ele não podia acreditar, o PM pediu seu documento de identificação e o
autuou por crime de desacato. José ficou detido algumas horas no camburão até
ser conduzido, junto com outros manifestantes, oriundos de escola pública, à
delegacia de Santo de Amaro.
Na
delegacia foi instaurado um termo circunstanciado de ocorrência e após assinar
o termo de compromisso José foi liberado. Lá fora estava seu irmão. Mais um
galho quebrado.
Arthur,
o irmão mais velho de José, narra que a mãe deles estava em casa, aos prantos,
e não para de indagar de si mesma o motivo do seu filho ter ido se meter em
confusão, pois ela já tinha prometido que no final do ano, quando recebesse seu
13.º salário, iria dar a entrada em um carro para ele, mas agora tinha um filho
fichado, processado criminalmente, um criminoso no dia do seu aniversário de 18
anos. Que vexame para família.
O irmão,
de alguma forma, o consolou, todavia o adverte:
“– Por
que você ofendeu o PM? Não foi essa educação que recebemos.”
José
responde:
“– Arthur,
eu não ofendi ninguém.”
Na volta
para casa o trânsito da cidade estava parado e os dois passaram a conversar
amenidades.
De
repente o telefone de Arthur toca, é Lídia, sua namorada quase noiva, indagando
onde ele estava e o porquê não tinha atendido ao telefone antes.
Arthur
resume o que aconteceu.
A
menina grita:
“– Que
vexame! Um irmão criminoso. Eu sempre disse a você que seu irmão era muito
alternativo e que um dia iria terminar mal. Conte a verdade Arthur pegaram ele
com algum baseado?”
Nesse
momento José não aguentou e solicita ao irmão que desligue o telefone, pois não
gostaria de ter sua vida exposta.
Depois
de um dia repleto de emoções, José já com 18 anos, resolveu falar o que estava
engasgado, já fazia algum tempo. Agora o seu irmão teria que ouvir. É agora ou
nunca.
“– Arthur,
Lídia sabe que você fuma maconha?”
Aqui vale a lembrança do crime de uso de
substancia entorpecente é crime, conforme o art. 28 da Lei 11.343/2006, no qual
Arthur se enquadra como usuário de maconha.
O irmão
não responde.
“– Arthur,
Lídia não combina nada com você, sabia? Ela é uma burguesinha, e o pior é que
usa a religião para tudo. Não aguento aquele discurso, e, principalmente, não
suporto ter que orar antes das refeições quando vamos jantar na casa dela.
Arthur
você já disse a Lídia suas percepções sobre Jesus Cristo?”
Mais
uma vez impera o silêncio.
José
continuou:
“– Arthur
pense nesse relacionamento, a menina é fervorosa quando o assunto e religião,
mas você já percebeu que ela praticamente não fala com a nossa Bá (Bá tinha
sido a babá dos meninos e estava trabalhando com a família por aproximadamente
20 anos). Ela tudo agradece a Jesus, porém é incapaz de dizer um obrigado a Bá
por um copo d’água.”
“Agora
assim eu te pergunto: Essa foi a educação que nós recebemos?”
José
naquele momento se sentiu forte. Achou que aquela foi a primeira conversa de
homem para homem que teve com seu irmão.
O que não imaginava é que, nesse momento,
estava praticando o crime mais grave do seu primeiro dia de imputável. E o pior,
pelo seu caráter de imprescritível o crime iria acompanhar José até a sua
morte, pois a única forma de extinção da punibilidade, no caso dos crimes de
preconceito, é a morte do agente, já que o crime, conforme o art. 5.º, da Constituição
brasileira, é inafiançável e imprescritível.
Para felicidade de José e para consumação
do crime a religião de Lídia foi o motivo determinante para o fim do
relacionamento dela com Arthur e assim é possível que José tenha praticado o
nebuloso crime previsto no art. 14 da Lei de Racismo,3 que tem a seguinte redação:
“Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o
casamento ou convivência familiar e social.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.”
No
final do dia José deita a cabeça no travesseiro e pensa que tem orgulho dele
mesmo.
Não era
para menos, estava na Universidade, direcionou parte do dinheiro, que poderia
ter gasto no Bar da Tripa, para tirar cópias, na íntegra, de todos os livros
indicados pelo seu professor favorito. Não fez como outros colegas, que
pirangaram e só tiraram cópia dos capítulos que o professor iria “cobrar na
prova”.
Participou
de uma passeata para melhorar o transporte público de sua cidade. Ele sabia da
promessa de seus pais de um carro, já que seu irmão mais velho acabava de se
formar em engenharia e estava empregado, agora o único peso da casa era ele,
mas será que era justo mais um carro para ir até a Universidade? Como ficaria a
mobilidade da cidade. Mais uma vez se orgulhava por pensar no coletivo e ri
sozinho quando se lembra do que disse ao PM. O fato fez com que ele fosse parar
na delegacia e lá, diferente do que aconteceu com os demais estudantes detidos,
até conheceu o delegado, gente boa por sinal, porém, até agora, ele estava
refletindo sobre a frase da autoridade:
“– Meu filho
você é um menino de família o que estava fazendo ali?”
No que
ele respondeu:
“– Ora,
estava protestando Dr!”
O
delegado era realmente gente boa e gostou dele, talvez o motivo da
identificação fosse o fato dele ter estudado no mesmo colégio do filho do
delegado e, por coincidência, morarem no mesmo bairro.
Depois
o seu momento de glória, a conversa com o irmão sobre Lídia, para os seus pais
a namorada, quase noiva do irmão, é a menina perfeita: estudante de medicina e
religiosa, e frequenta a Igreja aos domingos.
Plaf!
Para José isso era uma piada, pois nunca vai digerir a conversa que teve com Lídia
sobre a música Haiti de Gil e Caetano. Em um domingo eles tiveram uma conversa
sobre o novo Código Penal e a descriminalização do aborto. Quando o assunto foi
aborto Lídia ficou indignada, bateu o pé pelo direito à vida, logo ela que
quando Bá contou do assassinato do seu vizinho, com apenas 15 anos, pela polícia
ela justificou logo:
“– Também
se meteu com o quem não presta, né?”
Aí José,
um estudante de ciência política, afirmou categoricamente:
“– Você
me lembra a música de Haiti, no verso tanto amor ao feto e nenhum ao marginal.”
Ela
passou meses sem olhar para José. Pensava ele antes de dormir:
“– Não,
meu irmão não pode noivar e marcar casamento com essa moça. Logo ele que aos 16
anos me colocou para ler Nietzsche.”
No meio
desses pensamentos José dormiu. Realizado, com muitos de nós, com a consciência
tranquila depois dos crimes nossos de cada dia.
Contei essa história para dizer que
concordo com Louk Hulsman, abolicionista holandês, quando afirma que a maior
utopia que ele conhece não é o fim do sistema punitivo, mas sim a sua própria
existência.
Em junho de 2013 voltamos a ter passeatas
em várias cidades do Brasil por conta do aumento das passagens de ônibus e
outras bandeiras. Só posso afirma que o mais importante é verificar que a
juventude está nas ruas por uma causa coletiva: ausência do transporte público
de qualidade. Esse movimento pode parar o Brasil e nos fazer pensar diante de
tantas bandeiras que queremos e precisamos muito mais que chuteiras e lei
penais.
Pesquisas do Editorial
Veja também Doutrina
• A Constituição e o sistema penal, de Sidnei
Agostinho Beneti – RT 704/296; e
• Sistema penal consensual não punitivo – Lei
9.099/95, de Edison Miguel da Silva Júnior – RT 762/506.