quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Crime nosso de cada dia


Marília recentemente publicou uma construção literária sobre a expansão do sistema punitivo, cuja versão segue aqui em primeira mão!!!    


O crime nosso de cada dia
Marilia Montenegro Pessoa de Mello
Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife – UFPE.

Área do Direito: Penal; Criminologia Constitucional
Resumo: O texto apresenta de maneira informal a expansão do sistema punitivo e a criminalização dos movimentos sociais nas últimas manifestações no Brasil. A analise é feita a partir de uma narrativa em que um estudante universitário, no dia do seu aniversário de 18 anos, comete uma sequência de condutas tipificadas na legislação penal brasileira como crimes. No decorrer do dia desse jovem é possível perceber como o direito penaliza as relações cotidianas se afastando das propostas declaradas, especialmente do direito penal como “ultima, ratio” na concepção de um estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Expansão do direito penal; criminalização dos movimentos sociais; criminologia crítica
Abstract: This article presents, in an informal way, the growing expansion of the punitive system and the criminalization of social movements during the recent protests in Brazil. Taking a narrative approach, it explores the story of an undergraduate student who, during his 18th birthday, commits a series of acts that are defined as criminal acts in Brazilian law. The analysis of this young man’s day reveals how far the law goes in penalising our everyday relationships, which in turn reveals how the law diverges from its declared aims – particularly the criminal law, the ‘ultima ratio’ in a democratic State based on the rule of law.
Hoje, neste evento1, poderia abordar a ineficiência de sistema penal de várias formas, poderia apresentar concepções teóricas, apontar dados, porém, acredito que a história de vida da cada um de vocês seja a melhor maneira de comprovar o “nonsense” do sistema punitivo.
Dessa forma, resolvi apenas fazer um relato sobre José, que poderia ser João, Pedro ou quem sabe Maria. Essa situação ocorreu aqui na cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, mas poderia ter acontecido em qualquer cidade brasileira.
José vivia sonhando com o dia em que completaria 18 anos e poderia “tirar” sua carteira de motorista, comprar sua cerveja, suas revistas e ir ao cinema, sem nenhum temor de solicitarem sua carteira de identidade.
Hoje é o dia do 18.º aniversário de José.
José finalmente ficaria livre das ameaças constantes de sua mãe, pois ela fazia questão de lembrar toda sexta-feira, sempre na sexta-feira, que bebida era só para maiores de 18 anos. Já não aguentava dever favores ao seu irmão mais velho, logo agora que José tinha ingressado na Universidade e já era quase um profissional.
José acorda com vontade de fazer a barba e pensa na lista de atividades para realizar nesse dia tão importante.
Neste momento preciso fazer a seguinte explicação. Conforme o art. 27 do CP, o nosso amigo acordou imputável, embora, para contrariar parte da sociedade, a legislação ofereça alguns benefícios a José como: prazo prescricional reduzido pela metade e uma atenuante genérica, que é reconhecida como uma atenuante preponderante para os Tribunais Superiores, o que incomoda os autores de viés mais punitivista.
Voltemos a José.
Ele começou o dia se dirigindo até a autoescola, para finalizar os seus testes e, finalmente, receber sua carteira de motorista. No caminho, como estava apressado, tropeçou em uma planta ornamental, localizada no hall de entrada do prédio onde mora, além de sujar o tênis danificou três ou quatro galhos da planta.
Mais uma explicação.
Vamos considerar que José foi negligente, assim ele cometeu o primeiro crime de sua vida: dano a planta ornamental.
Pasmem. Tal crime admite a forma culposa, com pena de detenção um a seis meses, conforme o art. 49 da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais).
Na saída da autoescola estava próximo da Rua Afonso Pena, conhecida como “Rua da Xerox”, então aproveitou a oportunidade para pegar as cópias dos livros indicados pelos professores.
Estava orgulhoso, pois tinha reservado parte da mesada para comprar a xerox de três livros importantes para os seus estudos. Tinha certeza que seus pais ficariam felizes.
Explicando, nesse momento, José tinha acabado de cometer o crime do art. 184 do CP, com pena de detenção de três meses a um ano, como foram três livros já estamos no concurso de crimes, com sorte ele pode ser beneficiado pelo sistema da exasperação.
Com os livros nas mãos, e feliz da vida, foi chamado pelos seus colegas, estudantes do curso de ciência política da UFPE, para comparecer a passeata contra o aumento das passagens de ônibus. 2 Quando estava no Parque Treze de Maio, região central da cidade, em meio à confusão, foi empurrado por um PM. Rapidamente passa pela sua cabeça as suas aulas de história.
Então José afirma, ao Policial Militar, que é um cidadão de bem e que a ditadura tinha acabado. Por fim fala:
“– Camarada estou lutando pelos meus direitos.”
Naquele momento, ele não podia acreditar, o PM pediu seu documento de identificação e o autuou por crime de desacato. José ficou detido algumas horas no camburão até ser conduzido, junto com outros manifestantes, oriundos de escola pública, à delegacia de Santo de Amaro.
Na delegacia foi instaurado um termo circunstanciado de ocorrência e após assinar o termo de compromisso José foi liberado. Lá fora estava seu irmão. Mais um galho quebrado.
Arthur, o irmão mais velho de José, narra que a mãe deles estava em casa, aos prantos, e não para de indagar de si mesma o motivo do seu filho ter ido se meter em confusão, pois ela já tinha prometido que no final do ano, quando recebesse seu 13.º salário, iria dar a entrada em um carro para ele, mas agora tinha um filho fichado, processado criminalmente, um criminoso no dia do seu aniversário de 18 anos. Que vexame para família.
O irmão, de alguma forma, o consolou, todavia o adverte:
“– Por que você ofendeu o PM? Não foi essa educação que recebemos.”
José responde:
“– Arthur, eu não ofendi ninguém.”
Na volta para casa o trânsito da cidade estava parado e os dois passaram a conversar amenidades.
De repente o telefone de Arthur toca, é Lídia, sua namorada quase noiva, indagando onde ele estava e o porquê não tinha atendido ao telefone antes.
Arthur resume o que aconteceu.
A menina grita:
“– Que vexame! Um irmão criminoso. Eu sempre disse a você que seu irmão era muito alternativo e que um dia iria terminar mal. Conte a verdade Arthur pegaram ele com algum baseado?”
Nesse momento José não aguentou e solicita ao irmão que desligue o telefone, pois não gostaria de ter sua vida exposta.
Depois de um dia repleto de emoções, José já com 18 anos, resolveu falar o que estava engasgado, já fazia algum tempo. Agora o seu irmão teria que ouvir. É agora ou nunca.
“– Arthur, Lídia sabe que você fuma maconha?”
Aqui vale a lembrança do crime de uso de substancia entorpecente é crime, conforme o art. 28 da Lei 11.343/2006, no qual Arthur se enquadra como usuário de maconha.
O irmão não responde.
“– Arthur, Lídia não combina nada com você, sabia? Ela é uma burguesinha, e o pior é que usa a religião para tudo. Não aguento aquele discurso, e, principalmente, não suporto ter que orar antes das refeições quando vamos jantar na casa dela.
Arthur você já disse a Lídia suas percepções sobre Jesus Cristo?”
Mais uma vez impera o silêncio.
José continuou:
“– Arthur pense nesse relacionamento, a menina é fervorosa quando o assunto e religião, mas você já percebeu que ela praticamente não fala com a nossa Bá (Bá tinha sido a babá dos meninos e estava trabalhando com a família por aproximadamente 20 anos). Ela tudo agradece a Jesus, porém é incapaz de dizer um obrigado a Bá por um copo d’água.”
“Agora assim eu te pergunto: Essa foi a educação que nós recebemos?”
José naquele momento se sentiu forte. Achou que aquela foi a primeira conversa de homem para homem que teve com seu irmão.
O que não imaginava é que, nesse momento, estava praticando o crime mais grave do seu primeiro dia de imputável. E o pior, pelo seu caráter de imprescritível o crime iria acompanhar José até a sua morte, pois a única forma de extinção da punibilidade, no caso dos crimes de preconceito, é a morte do agente, já que o crime, conforme o art. 5.º, da Constituição brasileira, é inafiançável e imprescritível.
Para felicidade de José e para consumação do crime a religião de Lídia foi o motivo determinante para o fim do relacionamento dela com Arthur e assim é possível que José tenha praticado o nebuloso crime previsto no art. 14 da Lei de Racismo,3 que tem a seguinte redação:
“Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.”
No final do dia José deita a cabeça no travesseiro e pensa que tem orgulho dele mesmo.
Não era para menos, estava na Universidade, direcionou parte do dinheiro, que poderia ter gasto no Bar da Tripa, para tirar cópias, na íntegra, de todos os livros indicados pelo seu professor favorito. Não fez como outros colegas, que pirangaram e só tiraram cópia dos capítulos que o professor iria “cobrar na prova”.
Participou de uma passeata para melhorar o transporte público de sua cidade. Ele sabia da promessa de seus pais de um carro, já que seu irmão mais velho acabava de se formar em engenharia e estava empregado, agora o único peso da casa era ele, mas será que era justo mais um carro para ir até a Universidade? Como ficaria a mobilidade da cidade. Mais uma vez se orgulhava por pensar no coletivo e ri sozinho quando se lembra do que disse ao PM. O fato fez com que ele fosse parar na delegacia e lá, diferente do que aconteceu com os demais estudantes detidos, até conheceu o delegado, gente boa por sinal, porém, até agora, ele estava refletindo sobre a frase da autoridade:
“– Meu filho você é um menino de família o que estava fazendo ali?”
No que ele respondeu:
“– Ora, estava protestando Dr!”
O delegado era realmente gente boa e gostou dele, talvez o motivo da identificação fosse o fato dele ter estudado no mesmo colégio do filho do delegado e, por coincidência, morarem no mesmo bairro.
Depois o seu momento de glória, a conversa com o irmão sobre Lídia, para os seus pais a namorada, quase noiva do irmão, é a menina perfeita: estudante de medicina e religiosa, e frequenta a Igreja aos domingos.
Plaf! Para José isso era uma piada, pois nunca vai digerir a conversa que teve com Lídia sobre a música Haiti de Gil e Caetano. Em um domingo eles tiveram uma conversa sobre o novo Código Penal e a descriminalização do aborto. Quando o assunto foi aborto Lídia ficou indignada, bateu o pé pelo direito à vida, logo ela que quando Bá contou do assassinato do seu vizinho, com apenas 15 anos, pela polícia ela justificou logo:
“– Também se meteu com o quem não presta, né?”
Aí José, um estudante de ciência política, afirmou categoricamente:
“– Você me lembra a música de Haiti, no verso tanto amor ao feto e nenhum ao marginal.”
Ela passou meses sem olhar para José. Pensava ele antes de dormir:
“– Não, meu irmão não pode noivar e marcar casamento com essa moça. Logo ele que aos 16 anos me colocou para ler Nietzsche.”
No meio desses pensamentos José dormiu. Realizado, com muitos de nós, com a consciência tranquila depois dos crimes nossos de cada dia.
Contei essa história para dizer que concordo com Louk Hulsman, abolicionista holandês, quando afirma que a maior utopia que ele conhece não é o fim do sistema punitivo, mas sim a sua própria existência.
Em junho de 2013 voltamos a ter passeatas em várias cidades do Brasil por conta do aumento das passagens de ônibus e outras bandeiras. Só posso afirma que o mais importante é verificar que a juventude está nas ruas por uma causa coletiva: ausência do transporte público de qualidade. Esse movimento pode parar o Brasil e nos fazer pensar diante de tantas bandeiras que queremos e precisamos muito mais que chuteiras e lei penais.




Pesquisas do Editorial

Veja também Doutrina
• A Constituição e o sistema penal, de Sidnei Agostinho Beneti – RT 704/296; e
• Sistema penal consensual não punitivo – Lei 9.099/95, de Edison Miguel da Silva Júnior – RT 762/506.




 1 Palestra proferida na Universidade Católica de Pernambuco em evento organizado pela Escola de Advocacia Ruy Antunes (OAB-PE) em homenagem ao Prof. Cláudio Souto.
 2 No dia 20.01.2012 ocorreu no centro da Cidade do Recife uma passeata de estudantes, na sua maioria secundaristas, contra o aumento da passagem de ônibus. Após um confronto dos estudantes com a polícia, a passeata se dispersou e o grupo seguiu para a Faculdade de Direito do Recife, localizada em um prédio histórico no centro da cidade. Se reuniram em assembleia, agora com uma adesão maior de estudantes universitários, especialmente do curso de direito da UFPE e da Universidade Católica de Pernambuco para decidir os rumos do protesto. Em seguida existiu um novo confronto no local e a polícia, mais uma vez, agiu disparando bombas de efeito moral e balas de borracha.
 3 Aqui é importante explicar que: a chamada Lei de Racismo trata de outras formas de preconceito conforme determina o art. 1.º, com a seguinte redação: “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (grifo nosso).

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Inicia mais um ano - 2014 com muitas promessas!


Ano novo, novas metas!

O Grupo Asa Branca de Criminologia inicia mais um ano de atividades, comemorando muitas conquistas no ano que se encerrou e esperançoso quanto ao ano que se inicia!

As conquistas referem-se à expansão do grupo e a qualificação das pesquisadoras - a aprovação no doutorado da UNB de Manuela Abath, no mestrado da PUC-RS de Helena Castro e no mestrado da Unicap de Carolina Salazar.

Mas não somente, a aprovação do Projeto de Pesquisa - Dos espaços aos Direitos - financiado pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, é a mola potencializadora dos frutos conquistados e ao mesmo tempo a sementeira do ano que se inicia.

As esperanças em 2014 vêm com o retorno de Fernanda Fonseca, trazendo na bagagem o título de doutora concedido pela tradicionalíssima Universidade de Oxford, além das muitas experiências restaurativas para partilhar.

Além disso, as perspectivas de publicação das vivências no campo das unidades de adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei enchem o ano de trabalho e metas!

Portanto, em mais um ano o Grupo Asa Branca renova seus laços com a criminologia crítica e a pesquisa empírica, colocando Pernambuco no âmbito das discussões nacionais sobre o Sistema de Justiça Criminal, únicos compromissos deste grupo de estudo e pesquisa que apenas visa alçar vôos na busca de uma sociedade livre, forte e igualitária!