MENINO-HOMEM
Ana Luiza Flauzina
“Quero me ocupar das tuas inconsequências de menino arrogante
Dessa tua pretensão de ser inabalável
Te salvar da tua estupidez de trocar os estudos, pela pelada do fim da tarde
Quero conter essas urgências, que te fazem roçar seu corpo nessa sua namorada tão sedenta quanto tu
Evitar ladainhas de crianças e títulos de avó que não me convêm
Mas hoje, comprando as velas que sopras amanhã, essas preocupações me soam como privilégio que não tenho
Seu corpo franzino de menino preto começa a ser transformado pelos hormônios e não posso evitar o que está por vir
A identidade registra 16 em poucas horas e me dizem que seu tempo está chegando ao fim...
Eu que já rezo para que as balas não atinjam seu corpo, para que as desavenças não te cruzem os caminhos, para que as fardas não te surpreendam numa emboscada qualquer, agora me ajoelho para que não te enjaulem antes da vida te dar uma chance de amadurecer, de errar, de se redimir
A verdade é que crescer é atividade de risco
A tarefa é: ser salvos de nós mesmos
Mas com seu título de menino revogado
A vida deixa de ser jornada pra se tornar sina
Sina que renova em ti, as angústias do passado
Com sons de navios, de correntes, de chibatas
Sina que renova em mim, as misérias das lembranças
De filhos roubados, separados, mutilados
Sina que impõe a nós, a guerra como a única saída
Por liberdade, por justiça, por amor”
Nos
anos 90, como relata Galeano, telespectadores brasileiros foram convidados a
votar: que fim mereceria um jovem autor de um assalto violento? A maioria
esmagadora dos votos no extinto programa global “Você Decide” foi pelo
extermínio: a pena de morte recebeu o dobro da pena de prisão. Hoje, em meados
de 2015, a situação parece não ter se modificado consubstancialmente e a marca
da violência com a juventude continua inabalada. Essa violência é marca
qualitativa, e não quantificável, dos dados de desigualdade (medidos pela renda
e escolaridade). Essa violência atingirá essencialmente a massa excluída da
juventude para quem a escola será os Centros de Internação espalhados pelo
País. Dos Centros de Internação aos Presidídos; é esse o eixo de política
econômica e criminal que defendermos? Substituiremos de fato o combate da
pobreza pela sua gestão? No lugar de diminuí-la ou erradicá-la nos
contentaremos em geri-la, em administrá-la via sistema penal?
Homicidas,
assaltantes, estupradores. É esse o perfil de carreira criminosa que a mídia
descomprometida com o saber cientifico anuncia à população em geral. Jovem,
negro, envolvido no mercado de substâncias tornadas lícitas. É, por outro lado,
esse o perfil do ser humano que encontrará na redução um destino sem volta no
crime e na violência.
A
pesquisa dos Espaços aos Direitos, em estudo nacional sobre as adolescentes em
conflito com a lei, revelou que o ato infracional análogo ao crime de tráfico
de drogas representa no Distrito Federal 25% das internações, em Pernambuco pouco
mais de 20% e em São Paulo mais de 40%. Dizer não à redução da maioridade penal,
então, parece quase um imperativo de racionalidade, já que aquela, se
efetivada, será mais um elo na densa cadeia de criminalização das drogas e de
sua instrumentalização no trato da pobreza como problema de segurança pública.
Policializando problemas que deveriam ser politizados. Criminalizando conflitos
que deveriam ser solucionados.
Sim,
é sobre a entidade chamada tráfico que estamos falando em essência e não de
atos infracionais análogos a crimes violentos.“Existem garotos pobres que têm pai, mãe, nome (...). Pobres com suas
obras criminais toscas; suas lambanças. (...) só querendo vender um mato pros
garotos ricos. (...) É o único emprego do garoto que tem 14 anos. Como é que o
pai vai convencê-lo a ganhar 240 por mês, se ele pode ganhar 400 por semana
para soltar rojões?”. E são esses vapores-baratos,
serviçais do narcotráfico, descritos por Nilo Batista, que encontram e
encontrarão a violência deslegitimada do Sistema Punitivo.
No
Estado de Pernambuco, o relatório do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei, realizado no ano de 2012, revela
que 90% da população de adolescentes em conflito com a lei, no estado, é usuária de drogas. Esta unidade da
federação ocupa o 3º lugar no ranking de mortes de jovens entre 17 - 24 anos (em
mil), estando este estado, entre os anos de 2005 a 2007, no 1º lugar de mortes
no IHA (Índice de Homicídios na Adolescência). Fica claro, portanto, que reduzir
a idade penal é reforçar tais estatísticas brutais. É potencializar a
vitimização que já atinge essas pessoas. Paradoxalmente, a redução não trará
diminuição da violência, mas trará, sem dúvida, o reforço do sofrimento das
vítimas de sempre. Não estamos falando aqui daqueles que são roubados pelo
“menor infrator”, mas dos jovens negros e periféricos que morrem diariamente e
aos montes, numa perene indigência, numa constante corrente de sangue
invizibilizado e brutalizado, na construção negativa de uma subcidadania que
mortifica sujeitos e subjetividades.
Dizer
NÃO À REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL, então, é um exercício cívico de cidadania e
humanidade, mas é, acima de tudo, um exercício de racionalidade. A sociedade
brasileira precisa compreender que o sofrimento da juventude, o sangue do
menino preto e periférico, a dor das jovens encarceradas, a guerra armada contra
a pobreza, mesmo aquela que se manifesta na mais tenra idade, essas coisas não
trarão segurança. As cadeias não nos trazem segurança e a lei penal não reduz a
violência. E, mesmo aqueles/as que se mostram mais sensíveis à realidade a sua
volta e tentam justificar a “criminalidade” na pobreza, “um tratamento mais
ameno para o pobre que não teve nada na vida”, mesmo esses precisam entender,
como ensina Maria Lúcia Karam, que a posição precária no mercado de trabalho,
os defeitos de socialização familiar, o baixo nível de escolaridade, todos
fatores frequentemente presentes entre os/as jovens de classes subalternizadas;
esses fatores, ao contrário do que pensa o senso comum teórico, “não constituem
causas da criminalidade, mas sim, características com influência determinante
na distribuição do status de
criminoso”.
Sendo
assim, dialogue com suas/seus amigas/os, familiares, professoras/es. Cobre do/a
seu/a deputado/a uma postura pró-direitos humanos. É chegada a hora de
alicerçarmos no Brasil um pacto político criminal de emancipação, que contenha
a onda reacionária e os arbítrios da violência penal e que aponte para novos
horizontes de resolução pacífica dos conflitos. Que convertamos os sofrimentos
estéreis do sistema penal em alternativas férteis na construção de uma
sociedade popular, democrática e cidadã.
Cristhovão Gonçalves e Diego Lemos