terça-feira, 6 de novembro de 2012

Texto de Caio - membro de grupo!!!

Benvindos ao ‘ateísmo social’.

Referência: A cultura do crime ( David Garland)
Nos últimos 30 anos do século XX, período que David Garland denomina “modernidade tardia”, o Estado, no tocante a suas políticas criminais, assumiu conscientemente um complexo de Deus, do Deus cristão mais especificamente. Isso porque, embora confira aos indivíduos uma espécie de livre arbítrio tipicamente neoliberal, busca, a todo custo, assumir uma posição de onisciência e onipresença, o Estado que tudo sabe e tudo vê. O raciocínio é simples: as pessoas podem fazer aquilo que bem entenderem, mas se praticarem alguma conduta tipificada na lei (que só cresce) ou se saírem da linha (para usar uma expressão típica do raciocínio da lei e ordem) serão facilmente, senão imediatamente identificados, para que sofram uma punição severa e sirvam de exemplo para aqueles que pensem em fazer algo semelhante. Trata-se de uma constante e iminente ameaça em ser mandado para o inferno ou, em outras palavras, para as prisões.
E não há nada de novo quando se pensa em punição como método de inibir a prática de crimes. O novo, como assevera o autor, é o sentimento de constante vigília como parte da atuação estatal de combate à criminalidade, o olho do grande irmão se insurge como a alternativa maior e mais eficaz na prevenção do crime. As “teletelas” de George Orwell, bem como o famigerado panóptico de Bentham, postos em comparação com as políticas contemporâneas, evidenciam algo claro em comum: a idéia de que a natureza humana é tipicamente impura, e que, se houver brechas, as pessoas praticarão delitos e subverterão a ordem social.
Em ‘A republica’, Platão faz menção a um mito grego que muito diz sobre esse complexo de impureza do homem. Segundo a narrativa mitológica, um pastor chamado Gyges, quando passeava com seu rebanho, encontrou uma fenda no solo e entrou no local para explorá-lo. Nessa fenda, ele se deparou com um cadáver que portava um anel de ouro. Gyges, então, retirou o anel e passou a usá-lo. Certo dia, percebeu que quando virava o engaste do anel para dentro, se tornava invisível. Senhor de si, logo se tornou um delegado do rei; com amplo acesso ao monarca, logo seduziu a sua mulher, e com o auxilio dela, atacou-o e assumiu o poder. Essa história levanta uma indagação moral quase intrínseca: algum homem seria capaz de resistir à tentação do mal sem ninguém para monitorar seu comportamento?
A resposta a essa indagação certamente seria negativa, tendo em vista as diretrizes institucionais dos países do ocidente nesse final de século XX. A premissa da impureza da natureza humana é crucial no raciocínio descrito por Garland nas sociedades de modernidade tardia. Busca-se, portanto, reverter por completo a sensação de não ser visto, não damos oportunidade para que os Gyges de hoje em dia pratiquem aquilo que seus instintos desejam praticar.
Emerge, nesse contexto, um novo paradigma de controle social. Como seres livres e racionais, somos todos guiados por uma ética composta de um amplo espectro de opções possíveis. O crime aparece como uma dessas opções, um ato mecânico de decisão racional, não mais uma condição circunstanciológica e, como uma opção, o crime é tratado, desconsiderando elementos precisos da equação: a ineficiência do próprio Estado e as fragilidades estruturais do sistema. É que, segundo a ótica neoliberal, somos os responsáveis pelo nosso sucesso ou fracasso, a prosperidade e a riqueza são conquistas de cada indivíduo e, sobretudo, ninguém é responsável pela dificuldade dos outros. Seguindo esse raciocínio individualista, o âmbito privado torna-se permeado pelos mesmos princípios, daí o porquê dos prédios, dos condomínios, das cercas elétricas, das câmeras de segurança, dos seguranças mesmo.
A conversão das políticas públicas a esse teísmo punitivo emblemático dos nossos tempos, parece ter sido extremamente bem sucedida. O Estado assume um espectro de Deus com ‘d’ maiúsculo, um Deus do antigo testamento, um tanto mais severo, impiedoso e primitivo. O interessante é que um ato de fé tão simbólico seja contraposto a uma crença tão mais palpável e plausível: acreditamos em tudo que nos é imposto sem muita discordância ou análise crítica, só não acreditamos na humanidade.