O argentino Eugenio Raúl Zaffaroni é considerado uma das maiores
autoridades mundiais em Direito
Penal na atualidade. Referência obrigatória na
América Latina, é um dos responsáveis por fazer uma
releitura crítica do
Direito Penal. Juiz da Corte Suprema da Argentina, magistrado de careira,
exerceu
a advocacia, passou rapidamente pela política em seu país e produziu
uma vasta e conceituada obra
sobre sua especialidade.
De passagem pelo Rio de Janeiro para participar de seminário promovido
pelo Instituto Carioca de
Criminologia, Zaffaroni concedeu entrevista à Consultor
Jurídico na qual resumiu o papel do Direito
Penal. "A função do
Direito Penal, hoje e sempre, é conter o poder punitivo." Para ele, cabe
também
ao Judiciário limitar o poder punitivo. "No curso da história,
muitas vezes, o Judiciário traiu sua
função." Quando isso acontece,
explica, os juízes deixam de ser juízes e se tornam policiais
"fantasiados"
de juízes.
Crítico da mídia, que entende não só como sendo a imprensa e a TV, mas
também a indústria do
entretenimento, Zaffaroni acredita que é preciso ver a
realidade sem se deixar levar por discursos de
vingança. "A única coisa
que chama a atenção são as pessoas mortas por roubo. Mortos por roubo, pelo
menos no meu país, temos pouco. Temos um universo de homicídios em que a grande
maioria é entre
pessoas que se conhecem", diz.
Autor dos livros Em busca das penas perdidas e Teoria
do delito, o criminalista já escreveu mais de 20
obras. Algumas, junto com
grandes nomes do Direito Penal, como o brasileiro Nilo Batista, com quem
escreveu Direito Penal Brasileiro.
Frequentador habitual de eventos no Brasil, não é raro ver o juiz da
mais alta Corte de Justiça da
Argentina assistindo palestras discretamente no
fundo do salão. Ás vezes, até mesmo em traje esporte,
sem assessores por perto
e sem as formalidades tão caras ao meio juridico e acadêmico. “Não me
imagino
diferente”, diz a respeito de seu jeito informal.
Não por acaso Zaffaroni diz que levaria um dia para descrever seu
currículo. Seu perfil biográfico
exposto na página da internet da Corte
Suprema de Justicia da Argentina gasta 160 páginas para listar
cursos, títulos
acadêmicos, cargos judiciais e executivos, livros, artigos e seminários dos
quais já
participou.
Zaffaroni nasceu em Buenos Aires, onde se formou em 1962. Foi juiz
de alçada na capital argentina.
Nos anos 90, dirigiu o Instituto
Latino-Americano de Prevenção do Crime, das Nações Unidas, onde
ficou por dois
anos. Foi deputado constituinte em Buenos Aires e interventor no Instituto
Nacional de
Luta contra Discriminação. Exerceu a advocacia também por mais de
dois anos até ser nomeado, em
2003, ministro da Corte Suprema da Argentina.
Questionado sobre sua passagem pela política, Zaffaroni a classificou
como interessante. “Fiz parte de
um partido que começou minoritário e, em um
certo momento, se tornou a segunda força política do
país. Depois sumiu.
Bobagem dos líderes. Resultado da política espetáculo. A partir daí, deixei a
política.”
Leia a entrevista
ConJur — Para que serve o Direito Penal?Eugenio Raúl Zaffaroni — A função do Direito Penal,
hoje e sempre, é conter o poder
punitivo. O poder punitivo não é seletivo do poder jurídico, e sim um
fato político,
exercido pelas agências do poder punitivo, especialmente a polícia. Não estou
falando da
Polícia Federal ou da que está na rua e sim de todas as agências
policiais, campanhas de inteligência,
arquivos secretos, polícia financeira,
enfim, agências executivas. Essas agências têm uma contenção
jurídica que é o
Direito Penal.
ConJur — Cabe ao Judiciário limitar o poder punitivo?Zaffaroni — O Judiciário é indispensável
para isso. A contenção é feita pelos
juízes. Sem limites, saímos do Estado de Direito e caímos em um
Estado
Policial. Fora de controle, as forças do poder punitivo praticam um massacre,
um genocídio. O
Direito Penal é indispensável à persistência do Estado de
Direito, que não é feito uma vez e está pronto
para sempre. Há uma luta
permanente com o poder. O Estado de Polícia se confronta com o Estado de
Direito no interior do próprio Estado de Direito. Estar perto do modelo ideal
de Estado de Direito
depende da força de contenção do Estado Policial.
ConJur — Os juízes têm exercido a contento a função de limitar o poder
punitivo? Zaffaroni —
Esse é o dever do
Judiciário. No curso da história, muitas vezes, o Judiciário traiu sua função.
Na
medida em que os juízes traem sua função, tornam-se menos juízes, levando a
um estado policial em
que não há juízes, mas policiais fantasiados de
juízes. Foi o que aconteceu na Alemanha nazista.
ConJur — Há uma tendência de o Judiciário aplicar o chamado Direito
Penal do inimigo?
Zaffaroni — Estamos vivendo
um momento muito especial. Hoje, não é fácil pegar um grupo qualquer
para
estigmatizá-lo, mas há um grupo que sempre pode virar o bode expiatório.
É o grupo dos
delinqüentes comuns. É um candidato a inimigo residual
que surge quando não há outro inimigo
melhor. Houve uma época em que bruxas
podiam ser acusadas de tudo, das perdas das colheitas à
impotência dos maridos.
O que se pode imputar aos delinqüentes comuns é limitado, por isso é um
candidato a bode expiatório residual. Nos últimos decênios, com a política
republicana dos Estado
s Unidos, os delinqüentes comuns se tornaram o mais
recente bode expiatório.
ConJur — Qual o resultado dessa escolha do inimigo?Zaffaroni — Cria-se uma paranoia social, e
estimula-se uma vingança que não
tem proporção com o que acontece na realidade da sociedade.
Através da
história, tivemos muitos inimigos: hereges, pessoas com sífilis, prostitutas,
alcoólatras,
dependentes químicos, indígenas, negros, judeus, religiosos,
ateus. Agora, são os delinqüentes comuns,
porque não temos outro grupo que seja
um bom candidato. Esse fenômeno decorre do fato de os
políticos estarem presos
à mídia. Seja por oportunismo ou por medo, eles adotam o discurso único da
mídia que é o da vingança, sem perceber que isso enfraquece o próprio poder.
ConJur — De que maneira?Zaffaroni — Ao
adotar esse discurso, fomentam a autonomia das forças
policiais, do poder que
elas têm. Isso acontece porque a política ficou midiática. Não temos política
de
base, dirigentes falando com o povo; tudo é através da televisão. Eles estão
presos aos meios de
comunicação. Quando um juiz põe limites ao poder punitivo,
a mídia critica e o político, montado sobre
a propaganda da mídia, ameaça os
juízes. A grande maioria de juízes está ciente disso e confronta a
situação.
Mas uma minoria tem medo. Com medo da mídia, da construção social da realidade,
juízes
acabam se tornando policiais.
ConJur — Nesse mundo paranoico, citado pelo senhor, qual o pior inimigo
da sociedade?
Zaffaroni — Aquele que nega a
existência da emergência. O pior herege era aquele que negava o
poder das
feiticeiras. E a mídia tem razão de quem são os piores inimigos dela, porque
negando isso
estão negando o poder da mídia. O problema é confrontar a mídia.
Mas é o único jeito. Se ninguém
obstaculiza o avanço desse mundo paranoico,
inevitavelmente, vai acabar em genocídio.
ConJur — O juiz tem que lidar com as leis e as provas do processo. Mas
em processos de grande
repercussão, os juízes também têm de lidar com a
imprensa. Como se dá essa relação?Zaffaroni
— O
juiz ideal não existe. Como todo grupo, algumas pessoas são medrosas, outras
são acomodadas e
há as que assumem sua função. Cada um tem a sua consciência e
sabe o que está fazendo. Na vida,
nada é gratuito. Quem hoje está acomodado,
amanhã pode ser vítima também do discurso de vingança
. Os inimigos mudam muito
rápido. O político ou o juiz que aceita ou aprova os excessos e as agências
policiais fora de controle, está cavando o próprio túmulo. Porque amanhã, o
inimigo muda e o político
ou juiz corre o risco de virar ele próprio o bode
expiatório.
ConJur — No Brasil, quando ocorre um crime mais chocante, os políticos
tratam de apresentar
leis penais mais severas.Zaffaroni — Isso está acontecendo em todo o mundo. Essa prática destruiu
os
Códigos Penais. Nesta política de espetáculo, o político precisa se projetar na
televisão. A ideia é:
“se sair na televisão, não tem problema, pode matar
mais”. Vai conseguir cinco minutos na televisão,
porque quanto mais absurdo é
um projeto ou uma lei penal, mais espaço na mídia ele tem. No dia
seguinte, o
espetáculo acabou. Mas a lei fica. O Código Penal é um instrumento para fazer
sentenças. O
político pode achar que o Código Penal é um instrumento para
enviar mensagens e propaganda política,
mas quando isso acontece fazemos
sentenças com um monte de telegramas velhos, usados e motivados
por fatos que
estão totalmente esquecidos, originários deste mundo midiático. Ao mesmo tempo,
a
construção da realidade paranóica não é ingênua, inocente ou inofensiva. É
uma construção que sempre
oculta outra realidade.
ConJur — Como assim?
Zaffaroni — A mídia não fala da destruição do meio
ambiente, das doenças tradicionais, das
carências em outros sentidos. A única
coisa que chama a atenção são as pessoas mortas por
roubo. Mortos por roubo,
pelo menos no meu país, temos poucos. A grande maioria dos
homicídios é de
pessoas que se conhecem. A primeira causa de morte violenta, na Argentina, é o
trânsito. A segunda é o suicídio; a terceira, homicídio entre pessoas que se
conhecem; em
quarto, muito longe, vem homicídio por roubo. Mas nas manchetes
dos jornais o que sai é
homicídio por roubo. Ou seja, a primeira ameaça é
atravessar a rua. A segunda é o medo, a
depressão, psicose, melancolia; o
terceiro é a família, os amigos, e no final, os ladrões. Essa é a
realidade das
mortes violentas na Argentina. E nem estamos falando de mortos por doenças que
poderiam ser curadas se as pessoas fossem atendidas adequadamente.
ConJur — Mas as pessoas não matam por causa da mídia.Zaffaroni — Ninguém vai sair na rua
para matar por causa de uma série de TV.
Mas a propaganda contínua de violência na mídia, através
das notícias ou do
entretenimento, projeta a impressão de que a violência é uma escolha possível.
Posso me tornar advogado, médico, trabalhador braçal, ou também posso roubar. É
a banalidade da
violência. Essa propaganda está caindo em uma sociedade que é
plural, onde há pessoas frágeis ou que
têm patologias. O efeito reprodutor
disso é inevitável. E a propaganda contínua de que há impunidade é
uma mensagem
de incitação. Algo como: faça qualquer coisa que não vai acontecer nada.
ConJur — Uma parcela da sociedade defende que a polícia deve prender
logo e que não precisa
ter um processo judicial lento. Zaffaroni — Sem dúvida. O discurso retroalimenta-se. Essa
retroalimentação do
discurso sai para a rua em uma mensagem de incitação. Pessoas estão recebendo
uma mensagem de instigação ao crime permanentemente, o que produz um efeito.
Não há um fator
preventivo. Esse discurso também tem outra função. Temos uma
categoria de pessoas que são os
excluídos. Excluído é aquele que é de plástico,
descartável. O explorador precisa do explorado. O
incluído não precisa do
excluído. O excluído está fora do sistema produtivo. A técnica é introduzir
cada
vez mais contradições dentro da própria faixa de exclusão social.
ConJur — A criminalização é seletiva? Eugenio Raúl Zaffaroni — Sem dúvida. Em uma cadeia,
encontra-se a faixa dos excluídos que
são criminalizados. Mas, na outra ponta, percebemos que as
vítimas pertencem
basicamente à mesma faixa social, porque são aqueles que estão em uma situação
mais vulnerável, não têm condições de pagar uma segurança privada, por exemplo.
Eles ficam nas
mãos do serviço de segurança pública que sofreu grande
deterioração e cada dia se deteriora mais. E
o policial, em geral, é escolhido
na parte carente da sociedade. Enquanto os pobres se matem entre si,
“tudo
bem”. Eles não têm condições de falar entre eles, de ter consciência da
situação, de coligar-se
para nada, de ter nenhum protagonismo político. Assim
estão perfeitamente controlados. A tecnologia
moderna de controle dos excluídos
já não consiste em pegar os cossacos do czar para controlar a
cidade. Não. A
técnica é mais perversa: colocar as contradições no interior da mesma faixa
social e
fazerem com que se matem uns aos outros.
ConJur — Mas, hoje, também percebemos que há um discurso de que é
necessário não prender
apenas os pobres. Prender ricos passa a ser uma amostra
de que quem tem dinheiro também vai
para a cadeia. Eugenio Raúl Zaffaroni
— Sim. O rico, às vezes, vai para a cadeia
também. Isso
acontece quando ele se confronta com outro rico, e perde a briga.
Tiram a cobertura dele. É uma briga
entre piratas. Nesse caso, o sistema usa o
rico que perdeu. E, excepcionalmente, o derrotado acaba na
cadeia. Mas ter um
VIP na prisão é usado pela mídia para comprovar que o sistema penal é
igualitário.
É a contracara do self-made man. Ou seja, tem aquele
que vende jornal na porta do banco, e que foi
trabalhando, tornou-se
funcionário do banco, depois gerente e agora tem a maioria do pacote acionário
da instituição. Como essa sociedade tem mobilidade vertical, este chegou a ser
presidente ou dono do
banco. E veja como esta sociedade é igualitária. Ele caiu
e, hoje, está na cadeia. Mas o rico que está
preso é sempre um VIP que perdeu
para outro mais forte do que ele.
ConJur — O senhor disse que a tendência das cadeias é de desaparecerem.
Como será isso?
Eugenio Raúl Zaffaroni — Não
é uma tendência atual, mas vai acontecer nos próximos anos. Vamos
ter uma luta
econômica entre a indústria da cadeia e de segurança com a indústria
eletrônica. No
momento, a indústria da cadeia é forte, pelo menos nos países
centrais, como Estados Unidos. Mas, no
final, a indústria eletrônica vai
ganhar.
ConJur — Então é a cadeia física que vai desaparecer?Eugenio Raúl
Zaffaroni — Sim. Vamos
ter uma cadeia eletrônica e a
tradicional vai sumir. É uma luta econômica. Com uma nova geração de
chips,
tecnologicamente, não vai ter necessidade de ter muros nas prisões. Com
microchips embaixo da
pele, vamos ter um controle de movimento do sujeito. Se o
sujeito sair do itinerário prefixado, o chip
faz disparar um mecanismo que
causa uma dor paralisante por exemplo. Vamos ter a casa inteligente,
mas isso
também é uma cadeia. A gente acorda de manhã, põe o pé no chão e a casa já sabe
se a gente
vai para o banheiro, quer o café com leite, já prepara a comida.
Tudo muito bonito, mas é uma cadeia
também.
ConJur — Na medida em que isso acontece, não há risco de pessoas, que
não cometeram crime e
que não foram condenadas, passarem a ser monitoradas
também?Zaffaroni — Felizmente isso
vai
acontecer quando eu já não estiver neste mundo. Se isto acontecer quando eu
estiver neste mundo,
vou virar um terrorista e destruir toda essa aparelhagem
eletrônica. Acho que não vou ter tempo, estarei
muito velho para isso. Mas se
não é esse o grande perigo, ainda há um. Se continuarmos nessa direção,
em
certo momento, as próprias pessoas, com medo de serem seqüestradas ou roubadas,
vão optar por
serem monitoradas. No final, o Estado ou as agências executivas
vão ter um controle terrível. E essas
pessoas vão necessitar de nós, os
terroristas, para destruir esse controle. Se pensarmos sobre os
controles que
temos, hoje, sobre cada um de nós e os que tinham os nossos avós, vamos
perceber que
estamos muito mais controlados, presos. Se os criminosos não
existissem, o poder teria de inventá-los
para poder controlá-los. .
ConJur — Ainda existe a ideia da cadeia como forma de ressocializar o
preso ou essa discussão
já foi superada?Zaffaroni —A
ideia de de ressocialização é própria do estado previdente, do welfare
state. O liberalismo econômico destruiu o welfare state e
passou a existir a ideia de cadeia reprodutiva,
que são gaiolas. A cadeia se
tornou uma forma de vingança.
ConJur — O Judiciário no Brasil está fazendo mutirões carcerários para
garantir benefícios aos
presos. Como o senhor vê essa iniciativa?Eugenio Raúl
Zaffaroni — A única solução é ter na
cadeia o número
de pessoas para as quais podemos oferecer condições mínimas de dignidade. De
outro
jeito, vamos ter sempre cadeias superlotadas. A única solução é ter um
sistema de cotas. Se temos 2 mil
vagas, só podemos ter 2 mil presos. Não
podemos ter mais.
ConJur — Mas caberia ao juiz decidir quem vai para a cadeia ou não em
uma situação
dessa.Eugenio Raúl Zaffaroni — Pode
ser do legislador ou do juiz. Pode tirar aquele que só tem dois
meses de pena
para cumprir. O número de presos é uma decisão política de cada estado. Em todo
mundo, há previsão para que a pena seja cumprida dentro da prisão no caso de
matar ou estuprar
alguém. Já no caso de crime muito leve, não há previsão para
que o contraventor seja encaminhado à
prisão. Mas, no meio, tem uma faixa
inesgotável de criminalidade média, em que a pessoa pode ou não
ir para
a cadeia. Essa é uma decisão política, não é uma circunstância. Isso explica
situações totalmente
absurdas. Os Estados Unidos têm o mais alto índice de
pessoas presas do mundo. O Canadá, que está
do lado, tem um dos mais baixos.
Mas não é porque no Canadá os homicidas estejam na rua. Essa
escolha é
política.
ConJur — E como funcionam as interceptações telefônicas na Argentina. Há
abuso nesse tipo de
medida?Eugenio Raúl Zaffaroni — São
dispostas pelo juiz. Não tenho dados sobre quantas há no
país. Existindo motivos
suficientes, o juiz autoriza a interceptação telefônica, que é registrada
através de
uma central. Sempre com autorização
ConJur — E tem prazo máximo para que a interceptação seja feita?
Eugenio Raúl Zaffaroni — Não. Não é indefinidamente, deve ser feita
durante a investigação.
Como temos juiz instrutor, toda investigação é
controlada por ele. Cada passo da investigação
requer uma autorização do juiz.
Depois, podemos analisar se a decisão foi razoável. No caso de
não ser, a prova
é considerada nula. Não temos grandes problemas nesse sentido.
ConJur — No Brasil, talvez pelo modo como a Constituição foi elaborada,
quase tudo fica a
cargo do Supremo dar a palavra final. Isso também acontece na
Argentina?Eugenio Raúl
Zaffaroni — Sim,
inevitavelmente. Isso não significa que tudo seja resolvido pelo Supremo. Nós
rejeitamos muitas coisas. Mas todo mundo procura chegar à Corte. Temos, por
ano, 15 mil processos
para sete ministros. Desses, rejeitamos quase 14 mil.
ConJur — Habeas corpus também vai para o Supremo?Eugenio Raúl Zaffaroni
— Habeas
corpus não. Amparo, que é um
recurso, sim. Se alguém está preso cautelarmente e quer a liberdade,
pode
recorrer à Corte através de recurso ordinário. Porque achamos que a privação da
liberdade
equivale a sentença definitiva.
ConJur — E demora até esse recurso chegar à Corte Suprema?Eugenio Raúl
Zaffaroni — Sim.
Temos o mesmo poder que a Corte dos
Estados Unidos de escolher. Então, na maioria dos casos,
rejeitamos.
ConJur — O senhor disse que a privação da liberdade equivale a uma
sentença. No caso de
alguém que já foi condenado em primeira instância, vai
preso ou pode responder todo o processo
em liberdade?
Eugenio Raúl Zaffaroni — Pode continuar
o processo em liberdade. Se estava em liberdade, a sentença não está firme. Mas
é excepcional. É a prisão cautelar que pode chegar até a Corte. Prisões não
fundamentadas ocorrem em poucos casos. A maioria sabe que chegando à Corte, não
é viável. Tem que ser uma situação muito excepcional, um processo muito
arbitrário. Não é o normal.
ConJur — O ministro Antonin Scalia, da Suprema Corte dos Estados Unidos,
disse que o papel do Judiciário é aplicar leis feitas pela vontade do povo
através de seus representantes no Congresso. Assim, não cabe ao juiz decidir
além do que está expresso na lei. O senhor concorda com essa visão?Eugenio Raúl
Zaffaroni — Na medida em que o legislador não tenha
usurpado a função do constituinte, sim. Se o legislador criou uma lei que não
está em consonância com o sentido constituinte, é função do juiz aplicar a
Constituição e não a lei do legislador.
ConJur — Mas e o que não é previsto em lei?Eugenio Raúl Zaffaroni — O que não está previsto na lei, do ponto de vista penal, não é
nada. E do ponto de vista civil, tem que ser resolvido de igual forma. De outro
jeito, ficaria aberta uma guerra civil.
ConJur — Em sua opinião, o Judiciário serve para fazer justiça?Eugenio
Raúl Zaffaroni — Não acredito muito na
Justiça como valor absoluto. A função do Judiciário é resolver conflitos. Nesse
sentido, o Judiciário é um serviço. E um serviço público. Se funciona bem ou
mal, isso acontece como em qualquer serviço público.
ConJur —Recentemente, a Argentina reviu a lei de anistia. Como foi esse
processo?Eugenio Raúl Zaffaroni — Não, não houve
uma revisão. A lei foi anulada. O Congresso declarou a nulidade de uma lei. Eu
acho que o Congresso não pode declarar nula uma lei por razões que não sejam
formais. Por razões de fundo é muito complicado. Mas de qualquer maneira nós
declaramos que a lei era totalmente inconstitucional, seguindo a jurisprudência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Argentina condenou só os
comandantes. Depois declararam a anistia, mas o governo Menem indultou os
condenados. Nós declaramos a nulidade da anistia e dos indultos. Declaramos a
nulidade de tudo.
ConJur — Qual foi o argumento?Eugenio Raúl Zaffaroni — Estava contra o que nós tínhamos ratificado no tratado
interamericano de Direito Humanos. O Tratado Interamericano proíbe essas leis.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2009-jul-05/entrevista-eugenio-raul-zaffaroni-ministro-argentino#autores