terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Quem é essa mulher? É possível falar em proteção no sistema de justiça criminal?

Por Marília Montenegro e Thayara Castelo Branco

 

Publicado originalmente em: <http://justificando.com/2015/02/05/quem-e-essa-mulher-e-possivel-falar-em-protecao-no-sistema-de-justica-criminal/>


Historicamente, o foco da legislação penal nunca residiu na mulher enquanto sujeito ativo (este destinado ao homem, dominador e perigoso), mas sempre como vítima[1] (frágil, dependente, doméstica, honesta, oferecendo pouco ou nenhum perigo à sociedade), diferenciando quais as categorias de mulheres que poderiam protagonizar esse papel. A mulher, quando atendia os requisitos de “honestidade”, poderia ser vítima e merecer a “proteção do Direito Penal”, e quando entendida como “desonesta”, era a “provocadora”, recebendo muitas vezes, a intervenção do sistema penal. O comportamento sexual passou a interferir sobremaneira na reputação da mulher[2], sendo, em vários casos, a base para defini-la como boa ou má, honesta ou desonesta. Embora a “mulher honesta” tenha sido banida da legislação, continua arraigada no Direito (doutrina e prática)[3] e na sociedade, ainda sendo analisada nos julgamentos dos crimes de estupro[4].

Porém, a desclassificação das mulheres do CP foi, sem dúvida, um passo muito importante de vários que precisam ser dados em busca de um mundo sem arbitrárias divisões, que legitimam e perpetuam uma visão androcêntrica das sociedades patriarcais. É tempo de discuti-la e bani-la para além da lei.
Quando parecia que a “paridade” entre homens e mulheres tinha reinado na lei penal, entrou em vigor a lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. Esta introduziu no sistema jurídico brasileiro uma diferença de tratamento entre os gêneros, mesmo quando praticados crimes idênticos, desde que cometidos dentro de um contexto de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Utilizou o Direito Penal para, através da punição dos homens, “proteger” as mulheres.
A força simbólica do nome
A lei 11.340/06 foi criada, declaradamente, para dar um tratamento diferenciado à mulher em situação de violência doméstica ou familiar. Por isso já surgiu com um nome[5] de mulher: Maria da Penha[6]. A lei foi muito além das medidas de caráter penal, pois apresentou várias medidas de proteção, todavia a projeção (no campo teórico e prático) foi dada às medidas repressivas.

Maria da Penha tornou-se símbolo da luta contra violência doméstica em todo o Brasil[7]. A mídia divulgou amplamente o seu sofrimento e sua história, exercendo influência direta na criação e aprovação do referido diploma legal[8].

Assim, a lei perdeu uma das suas principais características: a impessoalidade. Exige-se que todas as mulheres sejam percebidas como Maria da Penha, vítimas dos seus algozes, quase sempre seus maridos ou companheiros, e que desejam, a todo custo, a sua punição para poder continuar a sua vida com tranquilidade. É importante ressaltar que, casos como esses, são exceções e não regra no dia-a-dia, pois em grande parte das agressões as mulheres não querem a prisão do marido ou companheiro, mas apenas que a agressão não se repita[9].
 
O sofrimento das vítimas é usado como um a nova forma de legitimar as leis penais. Aquelas, cada vez mais, são expostas nos meios de comunicação e suas imagens vinculadas aos políticos que prometem apoiá-las, com o intuito de obterem vantagens eleitoreiras.

Após o processo de “santificação da vítima” de um crime violento – geralmente uma mulher ou uma criança – passa a existir uma invalidação das preocupações com o delinquente, pois este deve ser punido de forma rígida e exemplar (o bode expiatório[10]), para que possa “pagar pelo que fez”. Qualquer menção aos direitos do delinquente ou a humanização do seu castigo é facilmente considerado como um insulto às vítimas e aos seus familiares[11]. Esse é o sentimento em torno da lei 11.340/2006. Toda crítica dirigida a essa lei soa como um ato de insensibilidade em relação ao sofrimento de Maria da Penha e, de certo modo, uma indiferença à questão da violência contra a mulher.

Os novos movimentos sociais (grupos ecológicos, feministas e pacifistas), buscam o direito penal como uma forma de defender os tidos como fracos e a justificativa para tamanha ampliação é a denominada função simbólica do direito penal[12]. Os defensores acreditam que o Estado ao legislar, teria a força de inverter a simbologia, já existente na sociedade, atuando como uma forma de persuasão sobre os indivíduos para que eles obedeçam a uma conduta mínima de comportamento, sob pena de serem taxados de delinquentes[13]. No caso da violência doméstica, o direito penal poderia inverter o poder onipotente do marido sobre a mulher, trazendo à tona o equilíbrio na relação doméstica [14].

Há que ficar claro que o direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social[15] e as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica. Punir pessoas determinadas para utilizá-las como efeitos simbólicos para os demais significa a coisificação[16] dos seres humanos.

Marília Montenegro é Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Professora de Direito Penal da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Email mariliamello@hotmail.com
Thayara Castelo Branco é Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, crime e Segurança Pública. Email: thaybranco@yahoo.com.br

[1] Sobre o tema Cf. Menor e Loucos In BARRETO, Tobias. Estudos de Direito II: edição comemorativa. 2. ed., Rio de Janeiro: Record, 1991.
[2] Sobre o tema conferir LARRAURI, Elena. Control informal: las penas e las mujeres… in LARRAURI, Elena (comp.)Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid: Siglo veintiuno, 1994, p. 1-16, e ainda nessa mesma obra, LEES, Sue. Aprender a amar. Reputación sexual, moral y control social de las jóvenes, p. 17-41
[3] A doutrina também repete os discursos, afirmando, por vezes até explicitamente, mas sempre de modo natural, a inferioridade do papel feminino. Essas mesmas ideias são ensinadas aos estudantes, que em breve irão reproduzi-las e legitimá-las em suas carreiras jurídicas, corroborando para a manutenção da dominação masculina no sistema jurídico.
[4] Sobre os estudos na área, ver : ARDILLON, Danielle, Debert, Guita Grin. Quando a vítima é mulher. Análise de julgamentos de crimes de estupro, espaçamento e homicídio. Brasília: Conselho Nacional do Direitos da Mulher – Ministério da Justiça, 1987, p. 35. Ainda sobre o tema, indica-se a etnografia feita na Delegacia da Mulher de Porto Alegre/RS, em relação aos atendimentos policiais decorrentes de violência sexual: VIEIRA, Miriam Steffen. Categorias jurídicas e violência sexual: uma negociação com múltiplos fatores. Porto Alegre: UFRGS, 2011.
[5] A atribuição do nome de um indivíduo a uma lei é uma forma de neutralizar as objeções que esta possa sofrer
[6] FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi… posso contar. Fortaleza : Edição do autor, 1994. 151p
[7] Maria da Penha tornou-se tema de música gravada por Alcione no disco “De tudo eu gosto”, no ano de 2007, assim como teve sua história narrada na literatura de Cordel In: ALVES, Valdecy. A lei Maria da Penha em cordel. Fortaleza: Tupynanquim, 2007.
[8]É, mais uma vez, importante destacar que os casos de violência doméstica que sensibilizam a mídia e, consequentemente, “os lares” brasileiro são sempre de mulheres de classe média, “independentes” e “inteligentes” que foram mortas, ou sofreram tentativa, por seus companheiros pessoas extremamente possessivas como é o caso de Sandra Gomide, que foi assassinada em 2000 pelo seu namorado, o jornalista Pimenta Neves, e Patrícia Ágio Longo que foi assassinada em 1998 pelo seu marido, o promotor de justiça Igor Ferreira e Silva. Quando se fala de violência doméstica, esses dois casos, mais o de Maria da Penha, são uma das formas de justificar a necessidade do enrijecimento da lei penal para acabar com esse tipo de crime.
[9] Sobre esta afirmação, ver a pesquisa de campo realizada na Comarca de Rio Grande/RS, fruto de uma pesquisa maior sobre os elementos que configuram as relações de gênero nos casos encaminhados aos Juizados de Violência Domestica e Familiar no RS, buscando compor o perfil das partes envolvidas, os motivos que levaram à violência e as expectativas e resultados obtidos por meio dos Juizados. CELMER, Elisa Girotti, et. all. Sistema penal e relações de gênero: violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher na cidade de Rio Grande(RS/Brasil). In:_. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli (org.). Relações de gênero e sistema penal: violência e conflitualidade nos juizados de violência domèstica e familiar contra a mulher. Porto Alegre: Edipucrs, 2011. Dentro da mesma temática pesquisa realizada em Recife cf. MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de. Do Juizado Especial Criminal à Lei Maria da Penha: Teoria e prática da vitimização feminina no sistema penal brasileiro. 2009. 247f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009
[10] Sobre o assunto ver: GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
[11] GARLAND, David. La cultura del control: crime y orden social en sociedad conteporánea. Trad. Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005, p. 240-243.
[12] Segundo Larrauri: Los nuevos movimientos partidarios de la criminalización hablan de las funciones simbólicas del derecho penal, pero guardan un embarazoso silencio acerca de la aplicación de este «símbolo» LARRAURI, Elena. La herancia de la criminología crítica. Madrid: Siglo veintiuno, 1991, p. 214. Sobre o direito penal como um meio de estabelecere princípios gerais SHEERER, Sebastian. Hacia el abolicionismo. In Abolicionismo penal. Buenos Aires: Ediar, 1989,p. 32-33.
[13] Defendendo a função simbólica da pena não como uma retribuição mais como uma reafirmação do Estado, conferir: RAMÍREZ, Juan J. Bustos; MALARÉE, Hernán Hormazábal. Nuevo sistema de derecho penal. Madrid: Trotta, 2004, pp. 57-59.
[14] Sobre o tema cf. LARRAURI, Elena. La herancia de la criminología crítica. Madrid: Siglo veintiuno, 1991, p. 220 e segs.
[15] É preciso reconhecer que as reformas judiciais e processuais não são substitutivos suficientes para as reformas políticas e sociais. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 161.
[16] Sobre a coisificação do ser humano para servir de exemplo aos demais cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El discurso feminista y el poder punitivo. In PIERANGELI, José Henrique (coord.). Direito criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, v. III, pp.76-77; Las imágenes del hombre en el derecho penal moderno. In Abolicionismo penal. Buenos Aires: Ediar, 1989, p.132-133.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Internação compulsória em debate - banca de dissertação no PPGD-UNICAP

O Asa Branca inicia as suas atividades em 2015 de uma forma diferente. Faremos todas/os coro na defesa de dissertação da mestranda Rafaella Amaral, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP. O tema abordado pela estudante - Judicialização da Saúde e a problemática das internações forçadas para tratamento de dependentes químicos - é objeto de preocupação do Asa Branca, representando uma importante interseção entre criminologia, direito penal, direito constitucional e teoria do estado. A banca será composta pelas professoras Marília Montenegro, Fernanda Fonseca, pelo professor Marcelo Labanca (orientador) e, como avaliadora externa, pela Profa. Luciana Boiteux (UFRJ).


Data: 27 de fevereiro
Local: Prédio da Pós-Graduação - UNICAP (auditório 3 andar)
Horário: 14h