Entrevista de magistrado sobre os riscos do populismo punitivo, especialmente no caso "mensalão"
Rubens Casara: “Risco da
tentação populista é produzir decisões casuísticas”
publicado em 25 de setembro de 2012 às 17:20
por Conceição
Lemes
Nesta
segunda-feira 23, o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão entrou na
nona semana. Muitos juristas o acompanham com preocupação. Alegam que
princípios de respeito às garantias fundamentais, como “o ônus da prova cabe à
acusação” e “não se pode condenar alguém com base em presunções”, estariam
sendo deixados de lado.
“A Ação Penal
470 ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário. O risco
da tentação populista é que passe a produzir decisões casuísticas, para
atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação como
opinião pública”, observa Rubens Casara. “Isso é grave, pois princípios e
teorias forjados durante a caminhada da Humanidade acabam esquecidos ou
afastados para a produção de decisões direcionadas a dar essa resposta
simbólica à sociedade.”
Esse risco
aumenta quando as decisões casuísticas são produzidas pela maior Corte de
Justiça do Brasil, como na Ação Penal 470, embora não sejam exclusividade dela.
“Acaba virando
jurisprudência, pois as cortes inferiores tendem a reproduzí-las”, prossegue
Casara. “Esse fenômeno o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina
Raul Zafaroni chama de comodismo crônico.”
“Ao se
espalharem por todo o Judiciário, as teses do STF na Ação Penal 470 acabarão
atingindo os cidadãos comuns”, adverte Casara. “São os ‘clientes’ preferenciais
do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem
condição financeira.”
Rubens Casara é
juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal da
Faculdade de Direito Ibmec/RJ. Porém, nesta entrevista ao Viomundo,
ele fala a partir de sua percepção como pesquisador do autoritarismo no sistema
de justiça criminal.
Segue a íntegra
da nossa entrevista:
Viomundo – Qual
a sua percepção do julgamento da Ação Penal 470 até o momento?
Rubens
Casara – Antes, um parêntese. O
Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada em período autoritário, impede
que os juízes se manifestem sobre casos em julgamento. Portanto, falo em tese,
em especial a partir do que tenho observado na mídia, em minhas pesquisas e
como professor de Direito Processual Penal.
Sobre a sua
pergunta, a minha percepção é de que a Ação Penal 470, que a grande mídia chama
de “julgamento do mensalão”, ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o
Poder Judiciário.
De um lado, sua
origem aristocrática; um poder conservador, distante do povo, comprometido com
quem detém o poder e o capital, e que historicamente sempre foi utilizado para
manutenção do status quo, ou seja, como obstáculo à transformação
social. Não se pode esquecer que, para parcela considerável dos que sempre
detiveram o poder econômico e político, o chamado “caso do mensalão”
passou a ser encarado como espécie de vingança pelas derrotas eleitorais
impostas pelo Partido dos Trabalhadores.
De outro lado,
uma tendência que tem sido chamada de “tentação populista”. Ela se traduz
em decisões que buscam agradar a opinião pública, que muitas vezes não passa da
opinião publicada pelas grandes corporações que controlam os principais meios
de comunicação de massa.
Agora, a tensão
entre a origem aristocrática e essa tendência populista está presente em vários
julgamentos e não só na Ação Penal nº 470. De igual sorte, existem no seio do
Poder Judiciário muitos conflitos, que por vezes permanecem velados.
Enfim, a
magistratura é plural, diversas ideologias se fazem presentes. Existem, por
exemplo, magistrados que atuam a partir de uma epistemologia e de um
instrumental autoritário e outros que adotam posturas e modelos adequados à
democracia.
Viomundo — Qual
o risco dessa tentação populista?
Rubens Casara –
É que as decisões passem a ser produzidas ad hoc.
Viomundo – O
que significa?
Rubens Casara –
São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do que é
vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública. Quando isso
acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para assegurar o
respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são conquistas de todos, forjados
durante a caminhada da Humanidade, acabam esquecidos ou afastados para a
produção de decisões direcionadas a dar respostas simbólicas à sociedade.
Os direitos e
garantias fundamentais sempre foram trunfos contra maiorias de ocasião, limites
à opressão estatal, o que, em última análise, caracteriza o Estado Democrático
de Direito. Só há democracia, em seu sentido substancial, se os direitos e
garantias fundamentais são respeitados. Decisões judiciais que afastam,
relativizam ou violam os direitos e garantias fundamentais corporificam,
portanto, sérias ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Viomundo — O
que a Ação Penal 470 vai representar mais adiante?
Rubens Casara – Como
toda decisão do Supremo Tribunal Federal, a tendência é de que as teses acolhidas
durante esse julgamento passem a influenciar a jurisprudência de todos os
órgãos do Poder Judiciário. Essa jurisprudência é o que será chamado de legado
jurídico desse julgamento.
Se, como
sustentam alguns, a Ação Penal nº 470 é um “julgamento de exceção”, uma decisão
casuística produzida para agradar parcela da sociedade brasileira, em
detrimento de direitos e garantias que normalmente seriam reconhecidos pelo
Supremo Tribunal Federal, o risco à democracia é muito grande, uma vez que se
está diante de um ato, de ampla repercussão, produzido pela maior Corte de
Justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF).
Viomundo — Por
quê?
Rubens Casara —
Porque há uma tendência de reprodução, pelas instâncias inferiores, das
decisões que são produzidas no Supremo Tribunal Federal. A esse fenômeno,
típico da burocratização judicial, o professor e ministro da Corte Suprema da
Argentina Raúl Zaffaroni chama de “comodismo crônico”.
Explico: a
melhor maneira de se fazer uma carreira rápida no Judiciário é não contrariar a
opinião daqueles que têm o poder de anular ou reformar as suas decisões. Os
juízes reproduzem as decisões dos seus tribunais e dos tribunais superiores
para não terem dores de cabeça na carreira, serem aceitos na classe e
conseguirem promoções.
Assim, se, por
exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotar as teses da “inversão do ônus da
prova em matéria penal” ou da “possibilidade de condenação a partir de
presunções contrárias aos réus”, estaremos dando passos vigorosos em direção ao
Estado Penal.
Por quê?
Porque essas teses estão em franca oposição ao princípio constitucional da
presunção de inocência, e o Supremo deixará de atuar como garantidor dos
direitos e garantias fundamentais.
Se, de fato,
isso acontecer, essas teses vão ser reproduzidas e acolhidas em outros casos a
serem julgados por diversos juízes e tribunas brasileiros. A porta para os
decisionismos e as perversões inquisitoriais estará aberta.
Viomundo — Isso
significa que as teses aceitas pelo STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os
cidadãos comuns?
Rubens Casara —
Com certeza. São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que
privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.
Viomundo – Em
função do julgamento, juristas têm usado muito a expressão “atos de ofício”. O
que significa exatamente?
Rubens Casara –
Atos de ofício do juiz são os produzidos sem a provocação de qualquer das
partes. Eles se originam da tradição inquisitorial. No sistema processual
inquisitivo, o juiz acusava, produzia as provas e, depois, também julgava a
pessoa a quem ele já tinha atribuído a prática de um delito.
E qual é o
risco dessa atuação de ofício? O fenômeno que o professor italiano Franco
Cordero chama de “primado da hipótese sobre fato”.
O que é esse
primado da hipótese sobre o fato? O juiz assume a hipótese da acusação como
verdadeira e passa o processo tentando demonstrar que está correto. Essa
atuação de ofício traduz uma antecipação de seu julgamento, consubstanciada na
aceitação da hipótese a partir da qual orienta a sua busca.
O problema é
que, ao partir de uma hipótese falsa, o julgador que adota essa postura
inquisitorial, não raro, chega a uma conclusão falsa, mas que ele acredita ser
verdadeira, mais precisamente, chega a uma “verdade” que ele construiu, a
partir do senso comum ou de distorções, por vezes inconscientes, do próprio
conjunto probatório.
Isso compromete
a imparcialidade, ou seja, viola a equidistância que o julgador deve manter das
versões postas pelas partes. Isso acaba por levar ao que Cordero chamou de
“quadro mental paranoico”, já que o juiz decide antes, ao assumir como
verdadeira a hipótese da acusação, e, depois, sai em busca de material
probatório para “confirmar” essa sua versão.
Viomundo – É um
risco da Ação Penal 470?
Rubens Casara –
É um risco de todos os processos nos quais o juiz quer assumir o protagonismo
probatório. Ele pratica atos de ofício na tentativa de demonstrar a veracidade
da hipótese que aceitou como verdadeira. Não comprovar essa versão significa
fracassar e ninguém gosta de fracassar.
Há uma
discussão muito grande sobre essa questão na doutrina brasileira. Há quem
defenda a possibilidade do juiz produzir provas de ofício, mas há excelentes
autores que dizem que não, que a gestão da prova deve permanecer com as partes.
A inércia do
juiz seria, então, uma garantia de sua imparcialidade.
Eu prefiro essa
segunda corrente que defende que o juiz, na medida do possível, deve ficar
equidistante das versões das partes. Ele deve receber as provas da acusação e
da defesa, para, no final, julgar a partir do conjunto probatório produzido
dialeticamente pelas partes.
Viomundo – O
ministro Joaquim Barbosa estaria assumindo o protagonismo probatório?
Rubens Casara –
Na atuação do ministro Joaquim Barbosa, que vem dos quadros do Ministério
Público, órgão constitucionalmente encarregado de formular hipóteses e produzir
provas que a confirmem, muitos enxergam essa tendência inquisitorial.
Confesso que
não estudei a fundo as decisões desse ministro, professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, que será o futuro presidente do Supremo Tribunal
Federal.
Para além do
que a mídia noticia, não conheço a atuação do Ministro Joaquim Barbosa.
Veja bem.
Existem leis infraconstitucionais que autorizam a produção probatória pelo
juiz. A questão é saber se essas leis são adequadas ou não à Constituição da
República. Uma lei infraconstitucional contrária à Constituição é imprestável e
não deve ser aplicada.
O ideal,
portanto, é o modelo em que cabe ao juiz julgar, ao acusador formular e provar
a acusação e ao defensor a missão de defender o acusado. O ideal é que o juiz
não participe da produção probatória. O ato de produzir provas é inerente à
atividade de acusar e de defender. Na verdade, um ônus de quem formula a
acusação, porque no processo penal brasileiro a carga probatória é toda do
acusador. A defesa não precisa provar nada, desde que a acusação fracasse na
sua missão de comprovar os fatos que constituem a acusação.
No modelo
brasileiro, o ônus da prova – aquele que tem o dever de fazer prova e vai arcar
com as conseqüências de não provar – é da acusação. Se o acusador não consegue
provar sua hipótese, o réu tem de ser absolvido. É a dimensão probatória do
princípio da presunção de inocência, o que se expressa na máxima in
dubio pro reo.
Então, o juiz
que assume o protagonismo probatório, o juiz-inquisidor, é uma figura
historicamente vinculada ao modelo inquisitivo, que não é a opção
constitucional feita em 1988 nem a da maioria dos Estados democráticos.
Viomundo – O
modelo inquisitorial surgiu quando?
Rubens Casara –
Do ponto de vista histórico, ele é posterior ao modelo acusatório que já
existia no regime ateniense. O sistema inquisitivo surge no século XIII e se
torna hegemônico na Europa continental até o século XVIII, momento em que tem
início a sua decadência. Curioso notar que o sistema inquisitivo nasce em uma
quadra histórica na qual se busca o fortalecimento do Estado, mas ainda hoje é
possível perceber sintomas desse sistema nas mais diversas legislações.
Viomundo – No
julgamento do AP 470, tem se falado em inversão do ônus da prova,
flexibilização de conceitos jurídicos, condenação a partir de presunções,
indícios… Como é que fica a situação, professor?
Rubens Casara —
Indício é uma prova indireta. Indícios são fatos efetivamente provados que
permitem, por dedução, a certeza acerca de outro fato que se quer provar.
No nosso modelo processual, é possível uma condenação com base em
indícios, desde que eles sejam capazes de demonstrar cabalmente a ocorrência
dos fatos descritos na denúncia. Esse não é o problema.
Por outro lado,
os demais fenômenos que você menciona representam sérios riscos a uma concepção
minimamente democrática de justiça penal, conforme já mencionei. Da mesma
maneira, a possibilidade de uma decisão ad hoc, voltada à
satisfação dos meios de comunicação de massa e de maiorias de ocasião forjadas
na desinformação, representa um risco ao Estado de Direito.
Por quê? Porque
o Poder Judiciário tem como sua principal característica o fato de ser
contramajoritário. Ou seja, ao contrário do Legislativo e do Executivo, que
dependem da votação popular, o Judiciário tem o dever de julgar contra as
maiorias, desde que isso seja necessário para preservar os direitos
fundamentais das minorias ou de um único cidadão. Existem limites ao exercício
do poder que, mesmo impopulares, devem ser respeitados.
Isso significa
que se, para respeitar os direitos fundamentais do Fernandinho Beira-Mar ou do
José Dirceu, o magistrado tiver que desagradar toda a opinião pública, ele tem
que fazer isso. O Judiciário é, ou deveria ser o garantidor dos direitos
fundamentais, dos direitos inerentes à condição humana.
Sempre que o
Judiciário cede àquilo que, no início, chamei de “tentação populista”, ele se
aproxima da atuação do Executivo e do Legislativo e, portanto, torna-se
desnecessário. O Judiciário só se justifica para assegurar a concretização do
projeto constitucional e, para tanto, deve, ou deveria, atuar como garantia dos
direitos fundamentais de cada indivíduo, criminosos ou não, inclusive aqueles
selecionados pela grande mídia para figurar como inimigos públicos da
sociedade.
Viomundo – Por
exemplo…
Rubens Casara —
Vamos imaginar uma sociedade racista. Se o Poder Judiciário não for
contramajoritário, as decisões vão ser racistas.
Numa sociedade
sexista, se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser
sexistas. Numa sociedade homofóbica, as decisões vão ser homofóbicas…
Cabe ao
Judiciário impor limites aos desejos e perversões das maiorias.
Acho importante
também frisar que os juízes, como todo mundo, estão inseridos em uma tradição
que acaba por condicionar suas decisões. O problema no Brasil é que essa
tradição é extremamente autoritária. As pessoas recorrem ao sistema de justiça
criminal para resolver os mais diversos problemas. Acreditam no uso da força
para solucioná-los. Problemas sociais ou políticos, por exemplo, são
desqualificados, descontextualizados e redefinidos como se fossem meros casos de
polícia a serem resolvidos no sistema de justiça criminal.
A sociedade
brasileira é autoritária. A ausência de rupturas históricas talvez explique
porque ainda hoje práticas típicas da ditadura, como a relativização de
direitos fundamentais, são naturalizadas. E essa natureza autoritária acaba
repercutindo em todas as decisões judiciais — da primeira instância à Suprema
Corte.
Viomundo – O
ônus da prova cabe à acusação…
Rubens Casara –
Nos modelos democráticos!!!
Viomundo – A
partir do momento em que o Judiciário inverte esse papel, qual o risco para a
sociedade?
Rubens Casara —
A inversão do ônus da prova em matéria penal é um sintoma nítido da ausência de
uma cultura democrática na sociedade brasileira. Em nome de uma maior
eficiência dos órgãos encarregados da repressão penal, da busca por um maior
número de condenações, direitos e garantias previstas na Constituição da
República são negados, e a sociedade brasileira assiste a tudo isso
calada porque se acostumou com o autoritarismo.
A naturalização
de posturas autoritárias impede a criação de uma cultura verdadeiramente
democrática, de respeito aos diretos fundamentais.
Nós, por vezes,
aplaudimos atos de autoritarismo. Há quem bata palmas para condenações desassociadas
de um suporte probatório robusto e confiável, conforme os meios de comunicação
de massa têm noticiado. Há também quem concorde com a inversão do ônus da prova
em matéria penal, sem perceber que isso representa um risco à própria ideia de
democracia processual.
Viomundo — Por
quê?
Rubens Casara —
Por que o ônus da prova cabe ao Ministério Público? Porque o Ministério Público
é o Estado-Administração, a parte que tem as melhores condições de provar as
hipóteses que formula. O acusado é, nessa relação, a parte mais fraca. Por mais
poderoso que o acusado seja, do outro lado está o Estado, o Leviatã, com sua
estrutura e recursos.
Essa é a
dimensão probatória do princípio da presunção da inocência. Se o indivíduo deve
ser tratado como se inocente fosse, cabe ao Estado afastar essa presunção, a
única admitida, no Estado de Direito, em matéria penal.
O sistema
processual penal, como instrumento de tutela da liberdade, permite constatar
que ao Estado também não interessa, e não deveria interessar aos seus agentes,
a condenação de um possível inocente, mesmo diante do risco da absolvição de um
culpado. Ao réu, basta a dúvida, que impõe, por força da Constituição, a
absolvição.
Ao adotar o
princípio da presunção de inocência e atribuir ao acusador o ônus de provar a
materialidade e a autoria dos delitos que o Estado pretende punir, o legislador
constituinte faz uma opção política que implica no reconhecimento de que alguns
culpados vão acabar absolvidos, mas que isso é melhor do que condenar pessoas
que podem ser inocentes.
Diante desse
quadro, o processo penal funciona e só se legitima como garantia contra a
opressão estatal.
Assim, se o
Estado quer punir quem pratica uma ilegalidade, ele tem de demonstrar, de forma
cabal, respeitados o devido processo legal e os demais limites éticos e legais,
que o acusado praticou um delito.
Não se pode
presumir que alguém é culpado, por exemplo, que determinada pessoa é “o chefe
da quadrilha”, a não ser que exista prova concreta, segura e suficiente da
existência e da autoria do crime narrado na denúncia pelo acusador.
Para alguém ser
condenado, o Estado tem de afastar qualquer dúvida razoável. Do
contrário, fica-se muito próximo do existia no modelo fascista italiano, no
nazista alemão e no da extinta União Soviética. Ninguém pode ser punido pelo
que é, por ser antipático ou desagradar aos detentores do poder, mas somente
por aquilo que se demonstra que ele fez.
Viomundo – Por
que a ideia de atribuir o ônus da prova ao Ministério Público, portanto ao
Estado?
Rubens
Casara — Para preservar o indivíduo da fúria
persecutória do Estado, respeitando-o como sujeito de direitos. Busca-se também
evitar que se onere em demasia a parte mais fraca da relação processual.
Sob o prisma
processual, somente a acusação é que alega a ocorrência de um delito,
atribuindo-o ao réu. A opção do nosso sistema é de que ao réu sempre se
atribuirá o benefício da dúvida, devendo a outra parte, o Ministério Público,
diante das prerrogativas e poderes que têm, comprovar o que alegou na denúncia.
No Brasil, nós
temos uma visão simplista de achar que só quem responde a processo criminal é
bandido e que “bandido bom é bandido sem direitos”.
Isso é falso.
Tem pessoas com a ficha limpíssima que praticaram uma enorme quantidade de
crimes, enquanto outras, que respondem a vários processos, são inocentes e
podem acabar condenadas. O sistema penal é seletivo, de todos aqueles que
praticam crimes, poucos acabam julgados; e nem todos que são julgados
praticaram crimes.
O desafio é
garantir os direitos fundamentais a todos que respondam a processos criminais,
sejam eles inocentes ou culpados. Isso é que nos faz humanos e qualifica o
processo penal como um instrumento racional de garantia dos direitos. O Estado,
durante o processo criminal, não pode violar direitos ou garantias do acusado,
sob pena de perder a superioridade ética que o distingue dos criminosos.
E se é para
desrespeitar os direitos fundamentais, não precisaríamos do processo penal, nem
do Judiciário. Bastava prender a pessoa, colocá-la na cadeia, tirando-a do
convívio social, sem maiores justificativas. Insisto: o Judiciário existe para
garantir os direitos fundamentais de todos.
Viomundo –
Diz-se que o Supremo está sendo pressionado até pela mídia no julgamento do
mensalão. O que acha?
Rubens Casara –
A influência midiática está intimamente ligada ao que chamei, para utilizar um
termo cunhado por Garapon, de “tentação populista”. O populismo penal,
aliás, toda forma de populismo, incorporado pelos tribunais — eu não estou
falando especificamente da Ação Penal 470 — é um risco para a sociedade.
Agora, é um
risco esperado. Numa sociedade do espetáculo não é estranho que o Judiciário
queira chamar atenção para si e reproduzir o que já acontece em outras esferas,
transformando-se num judiciário espetacular. Cada juiz também quer aparecer bem
no espetáculo.
Não causa
surpresa, portanto, que o Poder Judiciário, do primeiro grau até os tribunais
superiores, procure agradar aos meios de comunicação de massa através de
decisões, ainda que contrárias à Constituição da República.
Percebe-se que
a esquerda tem uma culpa tremenda no atual quadro, porque nunca deu importância
ao Judiciário, sempre o considerou como um mero instrumento de opressão e de
manutenção das estruturas sociais.
Acontece que no
Estado Democrático de Direito o Judiciário é fundamental à garantia dos
direitos e à concretização do projeto constitucional.
E o que fez o
Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder Judiciário? Contribuiu para uma
composição conservadora do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro.
O exemplo do
Supremo Tribunal Federal é emblemático: foram indicados para ministros, salvo
raras exceções, pessoas conservadoras, sem compromissos com uma visão
progressista de Estado, alguns ligados a setores conservadores da Igreja
Católica ou a políticos historicamente contrários às lutas do próprio Partido
dos Trabalhadores.
Em suma, perdeu
a rara oportunidade de promover uma verdadeira revolução democrática no Poder
Judiciário brasileiro. Vale registrar, por oportuno, que os movimentos sociais
e os setores mais progressistas da sociedade civil sequer foram ouvidos por
ocasião das escolhas.
Há um mito de
que os juízes devem ser neutros. Isso não existe. Sob o discurso da
neutralidade e da técnica, juízes praticam, e sempre praticaram, atos políticos
a partir de suas visões de mundo. A extradição de Olga Benário, grávida de
Anita Prestes, para os nazistas que a mataram, por exemplo, foi promovida a
partir de uma decisão política travestida da melhor técnica processual no
Supremo Tribunal Federal. Aliás, há um pouco de Eichmann em todos esses
magistrados que se afirmam neutros e meramente técnicos.
Acho que,
diante dos últimos acontecimentos, a própria esquerda que está no governo
federal acabará se conscientizando da necessidade de se pensar o Poder
Judiciário, de se criarem mecanismos de efetivo controle popular e de se
promoverem indicações para os tribunais superiores de pessoas comprometidas com
o projeto constitucional de vida digna para todos, para além dos projetos
pessoais de poder.