Por Marília Montenegro e Thayara Castelo Branco
Publicado originalmente em: <http://justificando.com/2015/02/05/quem-e-essa-mulher-e-possivel-falar-em-protecao-no-sistema-de-justica-criminal/>
Historicamente, o foco da legislação
penal nunca residiu na mulher enquanto sujeito ativo (este destinado ao
homem, dominador e perigoso), mas sempre como vítima[1]
(frágil, dependente, doméstica, honesta, oferecendo pouco ou nenhum
perigo à sociedade), diferenciando quais as categorias de mulheres que
poderiam protagonizar esse papel. A mulher, quando atendia os requisitos
de “honestidade”, poderia ser vítima e merecer a “proteção do Direito
Penal”, e quando entendida como “desonesta”, era a “provocadora”,
recebendo muitas vezes, a intervenção do sistema penal. O comportamento
sexual passou a interferir sobremaneira na reputação da mulher[2],
sendo, em vários casos, a base para defini-la como boa ou má, honesta
ou desonesta. Embora a “mulher honesta” tenha sido banida da legislação,
continua arraigada no Direito (doutrina e prática)[3] e na sociedade, ainda sendo analisada nos julgamentos dos crimes de estupro[4].
Porém, a desclassificação das mulheres
do CP foi, sem dúvida, um passo muito importante de vários que precisam
ser dados em busca de um mundo sem arbitrárias divisões, que legitimam e
perpetuam uma visão androcêntrica das sociedades patriarcais. É tempo
de discuti-la e bani-la para além da lei.
Quando parecia que a “paridade” entre
homens e mulheres tinha reinado na lei penal, entrou em vigor a lei
11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. Esta
introduziu no sistema jurídico brasileiro uma diferença de tratamento
entre os gêneros, mesmo quando praticados crimes idênticos, desde que
cometidos dentro de um contexto de violência doméstica ou familiar
contra a mulher. Utilizou o Direito Penal para, através da punição dos
homens, “proteger” as mulheres.
A força simbólica do nome
A lei 11.340/06 foi criada,
declaradamente, para dar um tratamento diferenciado à mulher em situação
de violência doméstica ou familiar. Por isso já surgiu com um nome[5] de mulher: Maria da Penha[6].
A lei foi muito além das medidas de caráter penal, pois apresentou
várias medidas de proteção, todavia a projeção (no campo teórico e
prático) foi dada às medidas repressivas.
Maria da Penha tornou-se símbolo da luta contra violência doméstica em todo o Brasil[7].
A mídia divulgou amplamente o seu sofrimento e sua história, exercendo
influência direta na criação e aprovação do referido diploma legal[8].
Assim, a lei perdeu uma das suas principais características: a impessoalidade.
Exige-se que todas as mulheres sejam percebidas como Maria da Penha,
vítimas dos seus algozes, quase sempre seus maridos ou companheiros, e
que desejam, a todo custo, a sua punição para poder continuar a sua vida
com tranquilidade. É importante ressaltar que, casos como esses, são exceções e não regra no dia-a-dia, pois em grande parte das agressões as mulheres não querem a prisão do marido ou companheiro, mas apenas que a agressão não se repita[9].
O sofrimento das vítimas é usado como
um a nova forma de legitimar as leis penais. Aquelas, cada vez mais, são
expostas nos meios de comunicação e suas imagens vinculadas aos
políticos que prometem apoiá-las, com o intuito de obterem vantagens
eleitoreiras.
Após o processo de “santificação da
vítima” de um crime violento – geralmente uma mulher ou uma criança –
passa a existir uma invalidação das preocupações com o delinquente, pois
este deve ser punido de forma rígida e exemplar (o bode expiatório[10]),
para que possa “pagar pelo que fez”. Qualquer menção aos direitos do
delinquente ou a humanização do seu castigo é facilmente considerado
como um insulto às vítimas e aos seus familiares[11].
Esse é o sentimento em torno da lei 11.340/2006. Toda crítica dirigida a
essa lei soa como um ato de insensibilidade em relação ao sofrimento de
Maria da Penha e, de certo modo, uma indiferença à questão da violência
contra a mulher.
Os novos movimentos sociais (grupos
ecológicos, feministas e pacifistas), buscam o direito penal como uma
forma de defender os tidos como fracos e a justificativa para tamanha
ampliação é a denominada função simbólica do direito penal[12].
Os defensores acreditam que o Estado ao legislar, teria a força de
inverter a simbologia, já existente na sociedade, atuando como uma forma
de persuasão sobre os indivíduos para que eles obedeçam a uma conduta
mínima de comportamento, sob pena de serem taxados de delinquentes[13].
No caso da violência doméstica, o direito penal poderia inverter o
poder onipotente do marido sobre a mulher, trazendo à tona o equilíbrio
na relação doméstica [14].
Há que ficar claro que o direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social[15] e as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica. Punir pessoas determinadas para utilizá-las como efeitos simbólicos para os demais significa a coisificação[16] dos seres humanos.
Marília Montenegro
é Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Professora de
Direito Penal da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de
Direito do Recife (UFPE). Email mariliamello@hotmail.com
Thayara Castelo Branco é Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, crime e Segurança Pública. Email: thaybranco@yahoo.com.br
Thayara Castelo Branco é Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, crime e Segurança Pública. Email: thaybranco@yahoo.com.br
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